Vicente Hao Chin Jr.
O medo está na raiz do conflito – seja entre homem e homem ou dentro do próprio homem. Um medo assim pode existir sob a forma de insegurança, ou medo da morte, de embaraço, de fracasso. Um homem medroso manifesta reações fisiológicas que são potencialmente violentas e destrutivas. O grande psicólogo William James observou:
O
medo é uma reação despertada pelos mesmos objetos que despertam a
ferocidade. . . . O medo tem expressões corporais de um tipo
externamente enérgico, e representa, ao lado da luxúria e da ira, uma
das três emoções mais excitantes a que a nossa natureza está suscetível. Nada caracteriza mais o progresso do bruto ao homem do que a redução na frequência de ocasiões propícias para o medo.
Livros
e artigos têm sido escritos sobre como lidar com fobias específicas,
mas nenhum, salvo pouquíssimos, é capaz de atacar o problema do medo
pela raiz. Mas os estudantes da vida superior não podem satisfazer-se em
tocar o medo apenas em seus aspectos superficiais ou sintomáticos. Ele
está interessado em extirpar a própria fonte do medo e dele se
livrarpermanentemente.
Este é um tema profundo. A completa libertação do medo significa que a pessoa éplenamente capazencarar a realidade como ela é. Uma pessoa assim é verdadeiramente uma alma liberta.
Os passos rumo à libertação do medo não são um segredo. Foram estabelecidos desde tempos imemoriais por grandes sábios. Mas poucas pessoas estão desejosas de levá-los a sério já que as consequências são revolucionárias para o indivíduo. E poucos estão prontos para uma genuína transformação interior.
Na tradição perene da intuição mística exige-se que o candidato livre-se dos grilhões que o impedem de se libertar. Nas tradições orientais, os grilhões são em número de dez. Dois delesdizem respeito diretamente àcompreensão do problema do medo.
Na raiz do medo está a apreensão universal sobre uma consequência indesejada. Aqui vemos que o medo tem raízes em duas limitações humanas:
1. A Falta de compreensão da natureza do eue de seus estados emocionais. O medo sempre existirá onde houver um eu que tenha um conjunto de expectativas precondicionadas a respeito de eventos e do ambiente. Um eu assim é incapaz de encarar as coisas como são. O eu médio ou ego é apenas um aglomerado de valores e gostos adquiridos. Esses valores seriam diferentes tivesse a pessoa nascido em uma outra época e lugar.
O primeiro passo rumo à libertação do medo é ver através dos valores adquiridos, compreender seu caráter transitório, e descobrir que constituem o eu de todos os dias com o qual nos identificamos.
Temos medo da morte porque aprendemos a temer a morte. Em certas tribos onde a morte não é vista desta maneira, não há absolutamente medo da morte. Tememos o fracasso porque aprendemos a valorizar o sucesso. Todas essas coisasestãoacumuladas em nossa mente e nós as identificamos com o nosso eu. Simplesmente substituir tais crenças por outras não é uma solução permanente, porque a identificação com qualquer crença produz ansiedade quando é ameaçada. Portanto, não é uma questão do tipo de crença com a qual o eu se identifica. Temos que investigá-la num nível mais profundo compreendendo o próprio eu.
É possível observar o processo de acúmulo e identificação do eu psicológico. Se observamos isso sutilmente e sem paixão, então descobriremos as atividades do eu – e o próprio “eu” – são apenas uma parte de nossa consciência total. É possível para a consciência não se identificar com esses valores acumulados – e agir a partir de um estado de não identificação. E quando a identificação cessa, o medo automaticamente cessa.
Este tema é ao mesmo tempo simples e complexo, e a pessoa pode facilmente ser levada a conclusões equivocadas. Por exemplo, este processo de não identificação não quer dizer que devemos descartar todos os valores adquiridos e levar a vida ridícula de um não conformista. É perfeitamente possível respeitar os valores sociais dos outros sem ser aprisionado por tais valores. Tal liberdade resulta de se estar livre do conflito interior – a fonte do medo.
Este é o livrar-se do primeiro grilhão que no Oriente é chamado de Sakkayadithi, a ilusão do eu.
2. Ignorar o processo maior. O segundo aspecto do medo é nossa demanda ou expectativa de que as coisas ou os eventos devam acontecer segundo um padrão “benéfico” para nós. Implícito aqui está a falta de confiança na ordem universal das coisas e no processo cósmic. Para nós estudantes da vida espiritual, chega um momento quando compreendemos certos insights– resultantes tanto da experiência quanto dos ensinamentos – que nos dão uma certa confiança a respeito da sabedoria do processo universal que governa a Natureza e o crescimento da humanidade. Nosso conhecimento do processo certamente é incompleto, mas é suficiente para colocar nossa confiança nele, sabendo que o que quer que aconteça, produzirá o crescimento e aperfeiçoamento dos seres humanos.
Em todo fracasso e perda há uma semente de crescimento. Em toda morte e destruição há renovação. Todo evento ou experiência, seja “favorável” ou “adverso”, é um elemento que ajuda a dar nascimento ao homem perfeito. O reconhecimento deste fato é um antídoto que dissolve o medo em quase todas as suas formas.
Mas não deve ser uma mera crença teórica,deve estar fundamentado no sólido insight que remove a dúvida quanto à sabedoria de todo o processo. Chega-se a isso através de estudo, reflexão, e compreensão intuitiva.
Este é o livrar-se do segundo grilhão – Vichikiccha – o grilhão da incerteza e da dúvida. Com o seu desaparecimento vive-se sem as ansiedades e pesares resultantes de uma vida insegura.
O ser humano que não mais é tocado pelo medo – manifestando ao mesmo tempo a qualidade da compaixão – será o tipo de pessoa que poderá auxiliar a trazer paz duradoura à humanidade – tanto individual quanto socialmente.
Texto retirado da Revista Sophia edição 42